HOMILIA
A Libertação Interior e a Plenitude do Ser
O Evangelho segundo Marcos (5,1-20) nos apresenta a poderosa cena da libertação do endemoninhado geraseno. Um homem aprisionado pelas forças do caos, vivendo entre os mortos, ferindo-se continuamente, distante da verdadeira vida. Sua existência é uma imagem da alma fragmentada, do ser humano que perdeu a centralidade e a harmonia, mergulhado em angústias e desordens que parecem intransponíveis. Mas eis que surge Cristo, a Palavra que ordena, a Luz que reintegra, e o homem é restaurado à sua plenitude.
O que essa passagem nos diz hoje, em um mundo tão saturado de ruídos, ansiedades e contradições? Se olharmos ao nosso redor, veremos que muitos vivem a mesma experiência do geraseno: aprisionados, não por correntes visíveis, mas por forças internas que os dilaceram. São os medos que paralisam, as vozes que confundem, as ideologias que fragmentam, os excessos que nos tornam reféns de impulsos desordenados. O homem moderno, imerso em tecnologia e progresso, muitas vezes sente-se desconectado de si mesmo, como se sua identidade estivesse dispersa em mil direções, sem unidade, sem centro.
Cristo atravessa o mar e chega àquele território não apenas para libertar um homem, mas para revelar um princípio eterno: a libertação verdadeira não vem da mera ruptura com os males externos, mas da restauração da harmonia interior. A sociedade busca curas superficiais para os males que nos afligem, mas apenas aquele que ordena com autoridade pode restituir a paz autêntica. O homem curado é reencontrado “sentado, vestido e em seu juízo” – símbolo da alma que retorna à sua condição original, centrada, iluminada, integrada.
Contudo, o episódio nos reserva uma surpresa: quando o geraseno, já restaurado, pede para seguir com Cristo, Ele lhe dá uma missão diferente. Não deve fugir, mas permanecer e testemunhar. Isso nos ensina que a verdadeira conversão não é evasão do mundo, mas transformação do mundo a partir do que recebemos. Somos chamados a levar a centelha da Luz ao cotidiano, às nossas relações, às estruturas que nos cercam, ao nosso tempo. A salvação não nos isola, mas nos faz pontes do divino na história.
A cidade rejeita Cristo por medo da mudança. Muitos preferem a ordem decadente ao choque da verdade. Hoje, não é diferente: quantos resistem ao Evangelho porque ele desafia suas seguranças, seus hábitos, suas visões do mundo? Mas aquele que foi tocado pela misericórdia não se cala. O geraseno, antes habitante da morte, torna-se anunciador da vida. E assim, a libertação que começou em um só homem se expande para muitos, revelando que o Reino não avança pela imposição, mas pela irradiação da presença divina em cada um de nós.
Que possamos, também nós, permitir que Cristo ordene nossos abismos, reintegre nossa essência e nos faça testemunhas da plenitude do ser.
EXPLICAÇÃO TEOLÓGICA
A Missão do Restaurado: A Testemunha da Misericórdia
A frase de Marcos 5,19 – "Mas não lhe permitiu, antes lhe disse: Vai para tua casa, para os teus, e anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve misericórdia de ti." – é uma síntese da dinâmica salvífica operada por Cristo e da missão confiada àqueles que experimentam a graça da libertação.
1. A Negação que Revela uma Missão
O pedido do geraseno curado parece natural: tendo sido libertado por Jesus, deseja segui-Lo fisicamente, tornando-se um de Seus discípulos diretos. Contudo, Cristo não o permite, e essa recusa é teologicamente significativa. Diferentemente de outros chamados – como os apóstolos que deixam tudo para segui-Lo –, este homem é enviado de volta ao seu mundo cotidiano, indicando que nem toda vocação se manifesta no afastamento da realidade, mas muitas vezes na reintegração transformadora nela.
A libertação operada por Cristo não é uma fuga do mundo, mas uma redenção dentro do mundo. A salvação não se concretiza no isolamento espiritual, mas no testemunho que se encarna no ordinário da vida. O geraseno não é chamado a uma peregrinação externa, mas a uma peregrinação interior, levando consigo a luz da experiência divina.
2. A Casa e os Seus: O Retorno ao Lugar Original
Ao ordenar-lhe que vá para sua casa e para os seus, Jesus aponta para a dimensão comunitária da graça recebida. O homem antes estava alienado de sua própria existência, vivendo entre os túmulos, símbolo da morte espiritual e do exílio interior. Sua libertação não é apenas pessoal, mas restauradora das relações. O pecado e a desordem fragmentam; a graça reúne e reintegra.
O primeiro campo de missão do restaurado é a sua própria casa, sua família, seus próximos. Essa ordem de Cristo desvela um princípio fundamental: o testemunho do Reino começa nos vínculos humanos mais essenciais. Muitas vezes, buscamos grandes feitos espirituais, mas esquecemos que o maior desafio da santidade é viver a graça no cotidiano.
3. O Anúncio da Misericórdia: O Evangelho Encarnado
A missão confiada ao ex-endemoninhado não é simplesmente propagar uma doutrina ou repetir palavras, mas ser testemunha viva da misericórdia divina. Ele não é chamado a argumentar teologicamente, mas a narrar aquilo que experimentou em sua carne e alma: a transformação operada por Deus em sua história.
Esse aspecto é crucial: o verdadeiro anúncio do Evangelho não é teórico, mas existencial. O mundo não precisa apenas de explicações, mas de vidas que encarnem a redenção, que manifestem a força do amor divino na realidade concreta.
A misericórdia divina não apenas perdoa, mas reintegra, ressignifica e reordena. O homem que antes estava despido e errante agora está vestido e em seu perfeito juízo (Mc 5,15). Essa restauração é uma imagem da própria obra da salvação, que não apenas liberta do mal, mas conduz à plenitude do ser.
4. O Contraste com os Habitantes da Cidade
Enquanto o geraseno curado recebe uma missão, os habitantes da cidade, por medo, rejeitam a presença de Cristo e pedem que Ele se retire (Mc 5,17). O que isso significa?
A misericórdia divina nem sempre é bem recebida. Há um custo na presença transformadora de Deus: Ele desafia estruturas, rompe confortos, expõe a necessidade de conversão. Os gerasenos, mesmo diante do milagre, escolhem o medo em vez da fé.
Aqui, o restaurado se torna um profeta em meio à resistência. Sua missão não é apenas anunciar a graça recebida, mas fazê-lo em um ambiente que talvez não o compreenda. No entanto, esse testemunho silencioso é muitas vezes mais eloquente do que qualquer discurso.
Conclusão: A Teologia da Restauração e do Testemunho
A recusa de Cristo em levar consigo o geraseno liberto revela que a verdadeira transformação não se dá na fuga do mundo, mas na santificação do mundo através da presença daqueles que foram tocados por Deus.
O testemunho cristão não se reduz a proclamar verdades abstratas, mas a irradiar a própria vida convertida. O Reino de Deus avança não apenas pela pregação, mas pela encarnação da misericórdia em cada relação humana.
Assim, como o geraseno restaurado, somos chamados a retornar ao nosso mundo não como éramos, mas como novos portadores da graça que nos transformou, anunciando ao mundo não apenas com palavras, mas com a vida, aquilo que Deus fez por nós.
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